Agora, a experiência tem um mundo e um corpo pelos quais atravessar. O homem deslocado pode, então, entregar-se à busca de seu significado existencial por meio da experiência, porém, a experiência vivida no momento do desterro é fragmentadora, causadora de ruptura entre tudo aquilo que dá significado à experiência do homem e ao homem. Resta, assim, somente a matéria que o homem carrega em si, sobre si: a memória.
Embora, o homem deslocado viva em um espaço fragmentado, profanado, entre uma infinidade de espaços neutros, ainda mantém, para si, "‘lugares sagrados’ do seu universo privado, como se neles um ser não-religioso tivesse tido a revelação de uma outra realidade, diferente daquela de que participa em sua existência cotidiana." (3)
Todos os ‘lugares sagrados’ que Ferreira Gullar pode evocar são espaços encontrados em sua memória, pois distantes de seu ambiente físico, porém, carregados de realidade e significação. A nostalgia encerrada na evocação destes lugares pode ser entendida como a nostalgia das ‘origens’, a nostalgia mítica de uma situação paradisíaca.
Interrogo, ainda, se a memória, como arcabouço intangível da origem humana, não seria, também, ficção. Um vazio fértil em que mitos e realidade, aquela diariamente vivenciada através das relações hierárquicas que compõe a estrutura da vida social, se unem para formar a matriz simbólica da organização humana. Embora existam provas documentais, rascunhos, autógrafos, guardados e catalogados em arquivos, institucionalmente protegidos e autorizados a divulgá-los, não nos é permitido reconstruir o passado, pelo simples fato de que é impossível retornarmos à origem das coisas para então conceituá-las e defini-las em sua complexa totalidade.
Se o passado imemorial, a memória original, é um vazio, é ausente, a forma para fazer surgir o que não há é a ficção. Proust(4) argumenta que o resgate deste momento primeiro caberia ao artista com sua intuição poética que o permitiria captar da natureza sua essência. Sendo a origem indisponível, seria preciso fundamentá-la, constantemente, na ficção que constitui a arte. Para Hannah Arendt(5), a tradição seria o fio condutor do passado que permitiria unir gerações sucessivas e que ao se esquecer da tradição perder-se-ia a profundidade da dimensão humana, em suas palavras: "A memória e a profundidade são a mesma coisa, ou melhor, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser pela lembrança.".(6)
Assim, se torna necessário construir (e reconstruir) o elo entre mito e presente, ciclicamente, e tal (re)construção é o que faz o autor: a literatura. Segundo a tradição política de Roma, o autor é aquele que vem primeiro, o que funda, derivando daí a autoridade (semantica e metaforicamente)(7). Por ser o escritor também autor, sua fundação cria um universo plausível, porque vinculado ao simbolismo da comunidade a qual representa, e, ao mesmo tempo, verdadeiramente memorável, enquanto relato de uma época vivenciada. Temos, então, a literatura como co-criadora da própria realidade, atuante no mundo simbólico-metafórico tanto quanto no factual, gerando e alimentando tradições ou revolvendo-as em busca de novas percepções que conduzam as mudanças ou que apenas as tornem perceptíveis.
Como é impossível retornar a estas paragens, porque elas estão inacessíveis, distantes, o caminho de volta à percepção de pertencimento do todo só pode acontecer na instância da consciência, de modo que não mais é resultado da percepção da ação do homem sobre as coisas, mas sim, resultado da reflexão da existência do homem sobre si mesmo, reflexão esta proporcionada pela evocação das lembranças que a memória arquiva no passado e libera no presente.
O trajeto da lembrança nos planos de consciência não consiste em uma regressão do presente ao passado, é ao contrário, uma progressão do passado até o presente. Parte-se do passado e conduz-se pouco a pouco a lembrança até que esta se materialize no estado de percepção atual, ou seja, no ponto em que se torna presente e atuante no corpo que é o estado extremo da consciência. No momento em que a lembrança se atualiza e passa assim a agir, ela deixa de ser lembrança, torna-se novamente percepção.(8)
E é a percepção de si, despertada pela evocação de lembranças gravadas pela memória que torna possível ao homem descontextualizado a reconstrução de seu eu, para si e perante o mundo, em um intrincado quebra-cabeça, em que tempo e espaço se encaixam perfeitamente a ponto de se tornarem um só momento. Assim, também, a perspectiva temporal do Poema Sujo se estabelece pela sugestão da imobilidade do tempo. Tudo acontece no momento presente, o poema é escrito, quase de forma total, com verbos no presente do indicativo, referindo-se a fatos passados, imaginados ou mesmo com referências do presente, como no trecho abaixo.
- e não importa -
que eu debruçado no parapeito do alpendre
via a terra preta do quintal
e a galinha ciscando e bicando
uma barata entre plantas
e neste caso um dia-dois
o de dentro e o de fora
da sala
um às minhas costas o outro
diante dos olhos
vazando um no outro
através de meu corpo
dias que se vazam agora ambos em pleno coração
de Buenos Aires
às quatro horas desta tarde
de 22 de maio de 1975
trinta anos depois
O poema transcorre um percurso que vem marcado, temporalmente, como dia, tarde, manhã e noite, porém o correr do tempo não se apresenta longitudinalmente, mas sim como uma espiral, presa a um espaço determinado, o eu no agora permanente, do qual é possível fazer-se uma leitura vertical, sugerida pelas aparentes marcações de tempo.
O ser em si, imune ao curso do tempo, existe num presente perpétuo e goza do fruto da afirmação da Vontade de vida. A impossibilidade de conhecer de imediato essa identidade é precisamente o tempo, uma forma e limitação de nosso intelecto. Há, pois, apenas um presente, e este sempre é: pois é a única forma de existência efetiva, o passado não é diferente do presente, a não ser em nossa apreensão. E os fatos todos de uma vida acontecem, senão por única aparência, de uma vez no agora permanente.(9)
A lembrança de um passado trazido até o presente, desencadeia a percepção do agora, materializado no momento presente, deixa de ser estado cerebral e torna-se ação, porém, a lembrança pura é uma manifestação espiritual. Com a memória estamos efetivamente no domínio do espírito.(10)
O espírito humano, universalmente compreendido como tal, é a consciência do homem a respeito de si como representante deste espírito humano. Mas para o homem que necessita de um conhecimento de si, isto não é suficiente, pois é universal, e como característica universal está em tudo, como coisa externa a si, como uma folha de árvore que é folha em todas e qualquer uma folha de qualquer árvore.(11)
O que determina o ser, como ser distinto, é aquilo que está fora de si, o outro, e, ainda assim, permanece integrado em si, relacionado consigo, enfim, o ser espiritual, que é em-si-e-para-si: a substância espiritual. Deve ser isso também para si mesmo, deve ser o saber do espiritual e o saber de si como espírito. Deve ser para si como objeto, mas ao mesmo tempo, como objeto suprassumido e refletido em si.(12)
Ferreira Gullar exorta sua cidade natal na semelhança que possui com ela. No seu estar em si, estando em outra cidade, embora ainda em São Luís do Maranhão.
O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade
mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa:
o homem, por exemplo, não está na cidade
como uma árvore está
em qualquer outra
nem como uma árvore
está em qualquer uma de suas folhas
(mesmo rolando longe dela)
O homem não está na cidade
como uma árvore está num livro
quando o vento ali a folheia
a cidade está no homem
mas não da mesma maneira
que um pássaro está numa árvore
não da mesma maneira que um pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo
a cidade está no homem
quase como a árvore voa no pássaro
no pássaro que a deixa
cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma
a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas
O saber-se em si, a certeza imediata de si mesmo, é a forma absoluta do ser, ou do ser incondicionado. Diante da ruptura inevitável causada pelo afastamento do ser do espaço que o construiu como sujeito, da mediação ativa que formou o hábito da significação em seu corpo(13), o tratamento destinado ao ser seria o de reconstrução, de resignificação da identidade supostamente perdida, porém a consciência de ser no mundo se dá no âmbito interno, naquilo que pode ser evocado como o espírito humano, mas sem retirar as especificidades de cada ser. Pois é no reconhecimento e na consciência da especificidade, e não no universal, que se dá o ser absoluto, mito e história em um só corpo, em uma só existência.
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(3) Idem. Página 28.
(4) Marcel Proust. Contre Sainte-Beuve, Paris: Gallimard, 1987.
(5) Hannah Arendt. Entre pasado y futuro. Madrid: Península, 1995.
(6) Idem, página 125.
(7) Morgan Quero. Pura literatura. La política como representación. In: Metapolítica, número 21, volume 6, 2002. Página 21.
(8) Henri Bergson. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, 2ª ed., página 280.
(9) Arthur Shopenhauer. Metafísica do Amor. Metafísica da Morte. São Paulo: Martins Fontes, 2000, página 88.
(10) Henri Bergson. Idem. Página 281.
(11) G.W.F. Hegel. Fenomenologia do Espírito. Parte I. Petrópolis: Vozes, 2000, 5ª ed., página 82.
(12) Idem. Página, 33.
(13) Pierre Bourdieu. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2001, 5ª ed., página 339.
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Laísa Fernandes Tossin Graduada em Letras – Português (2003) e com estudos de especialização em Literatura Brasileira na Universidade de Brasília em 2003. Atualmente é assistente de pesquisa do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (www.csem.org.br) com pesquisas na área da memória, com abordagem antropológica e tendo como tema transversal a mobilidade humana (migração, refúgio e outras formas de deslocamento). Teve o artigo sobre projeto migratório feminino e as representações simbólicas da maternidade no corpo da mulher migrante aprovado para publicação na Revista Imaginário do Laboratório de Estudos do Imaginário da Universidade de São Paulo, volume 19 a lançado em novembro de 2006. |
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