Em Outrora Agora vivemos a experiência da probabilidade, tanto da história quanto do sentido do texto, e tal incerteza corrobora a tese sobre a abertura (de sentidos e significados) de uma obra literária

 

 

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Por trás das letras: as palavras e os sentidos em Outrora Agora, de Augusto Abelaira

por Maria Clara Maciel

 

Saber consiste, pois, em referir a linguagem à linguagem. Em restituir a grande planície uniforme das palavras e das coisas. Em fazer tudo falar. Isto é, em fazer nascer, por sobre todas as marcas, o discurso segundo do comentário. O que é próprio do saber, não é nem ver nem demonstrar, mas interpretar.

Michel Foucault, 2000.

Na narrativa Outrora Agora, a metalinguagem, fenômeno tão comum nos romances pós-modernos, reveste-se de singular autenticidade para compor o espírito de um tradutor apaixonado por literatura: ela constitui na obra, antes de mais nada, um valioso percurso de dicas de leituras que o Autor nos sugere através da relação de dissecação e especulação que o tradutor Jerônimo tem para com as palavras e a própria literatura.

Jerônimo fala de palavras e literatura, e isso, de certa forma, direciona a leitura, já que somos levados a associar, na obra, os mesmos caracteres a que ele se refere em seu discurso, conforme fragmento abaixo:

(...) ao pedir ao marido, a despropósito (...) que avisasse a filha para trazer os cobertores, quando viesse no princípio da semana, foi isso que quis dizer (poderia telefonar-lhe) ou discretamente avisou-me de que apenas dispunha-se de mais três ou quatro dias para estar sós e de que o tempo aperta? (...) Seria necessário dizer "no princípio da semana" quando o marido certamente sabe que é no princípio da semana? (Abelaira: 1996, 66). Grifo nosso.

Jerônimo procura o fim último das palavras, espia por trás delas, abaixo delas, e tenta extrair o sentido oculto nos enunciados. No fragmento acima, ele insinua-nos que é preciso estar atento às diferentes nuanças de sentido que pode conter um enunciado, e que por trás das palavras pode haver uma intenção, mais profunda, e que é preciso desvendá-la. Ora, em uma obra irônica como Outrora Agora, vemos-nos tentados a analisar “Jerônicamente” todas as falas que dêem margem ao dúbio (contam-se praticamente todas). Todavia, não arriscaríamos afirmar tal raciocínio categoricamente, uma vez que, na obra de Abelaira, nada se firma definitivamente. Este é o romance das possibilidades, do vir a ser, de forma que não se pode, seguindo exemplo de Jerônimo, afirmar, acertadamente, um segundo sentido nos enunciados, porquanto o próprio personagem nos alerta:

(...) Como, por de baixo de cada uma das palavras da Cristina, me interrogo sempre se não há outro sentido, ela não se interrogará da mesma forma acerca de mim? É isso, eu quero sempre dizer outra coisa? (...) Sim, a que palavras a Cristina terá atribuído outro sentido? Procurá-las. Proceder ao inventário das palavras possíveis. Não, só ela as conhece. Mas estuda-me, experimenta-me. (Abelaira: 1996, 66). Grifo nosso

Na passagem acima, a tese anterior (de que tudo tem um segundo sentido) é desmontada: indiretamente, alerta-se o leitor quanto ao caráter impreciso, indefinido e suspenso da obra, onde nada se sustenta, nada se confirma, incluindo-se aí as suposições e especulações do próprio leitor, ora autorizadas, ora desautorizadas pelo personagem.

Maria de Lourdes Ferraz confirma nossa hipótese quando afirma que “o jogo irônico, pelo não-dito, pela relação entre o ser e o parecer, provoca no leitor a busca de um sentido (im)possível na obra, estabelecendo-se, desse modo, uma relação dialógica entre o autor e o leitor”. (Ferraz: 2004).

No âmbito das palavras, pode-se observar, ainda, a interessante relação do protagonista para com estas: ele persegue, escolhe ou reprova as palavras, procura a melhor forma de se expressar, busca a adequação e a exatidão vocabular. Até certo ponto, nada excepcional, se pensarmos em um tradutor, ou seja, alguém que reescreve livros, diz o mesmo em outro código lingüístico. Mas tal característica (de esmiuçar palavras) fica por demais interessante se observada a relação de paixão, prazer e ludicidade. Jerônimo brinca com as palavras, degusta-as, e isso muito lhe agrada:

Sobre os regos de água, sobre os modos de defendê-los da erosão, fiquei um especialista exímio.- Espanta-se com o emprego da palavra "exímio", mas repete-lhe, dando agora um tom irônico (que possivelmente já teria antes). – Exímio. O desejo de ouvi-la responder: "Exímio?", de ouvir a palavra na boca dela (...). (Abelaira: 1996, 143).

Neste fragmento, Jerônimo se espanta com a sua própria escolha vocabular-exímio. Mas repete tal vocábulo (como quem gostou do que disse) e deseja ouvir a Cristina repetir tal palavra, e, ainda mais, deseja-a na boca de Cristina. Uma relação lúdica, prazerosa, e até mesmo erotizada com as palavras, já que elas são objetos de paixão para Jerônimo, e que paixão envolve desejo, e, desejo, realização:

A Cristina, a Filomena, a súbita excitação do pénis. Que sentiu quando conversava com a Cristina. (...) O teu estímulo não veio directamente do corpo da Cristina, passou pelas palavras. Pelas palavras? Mas nem todas as palavras de mulher estimulam o teu sexo, somente as palavras de certas mulheres. (...) Daqui em diante a oliveira "a palavra oliveira" recordar-te á a Cristina, passará por vezes a excitar-se. (Abelaira: 1996, 185).

Não nos deitamos, não nos tocamos, mas fomos amantes verdadeiros. O poder táctil das palavras. (Abelaira: 1996, 222).

As palavras excitam, são estímulos sexuais sem serem intencionalmente lascívias ou libidinosas, no primeiro fragmento, enquanto que no segundo, elas proporcionam o deleite das almas através de um poder tátil que afaga o intocável, o não-palpável. Um impossível que se realiza através da linguagem.

Jerônimo ainda lança um olhar para além dos limites da sua relação íntima com as palavras, questionando-se acerca da relação da sociedade para com estas e dos sentidos e interditos sociais, conforme fragmento abaixo:

Problemas difíceis: há palavras feias e palavras socialmente consideradas aceitas. Por que razão "foder" é feio e copular não é, quando, na verdade, copular, como palavra em si mesma, é bem mais feia, e bem mais difícil de pronunciar do que foder?(...) Urinar em vez de mijar, traque em vez de peido. (...) É isso, é isso, por que razão certas palavras, certas palavras e não coisas, foram proibidas? Coisas que até podem ser ditas, se as palavras forem outras. (Abelaira: 1996, 114).

Esta passagem nos conduz aos conceitos saussurianos de significado/significante e arbitrariedade do signo lingüístico. A questão foi apenas pincelada e soa como questionamento ao leitor: a “coisa” (sentido) seria exatamente o mesmo entre as duplas de palavras acima? A imagem acústica certamente o é, ainda que as palavras possam evocar nuanças diferenciadas de sentido. E como determinar palavras permitidas e proibidas em uma sociedade? E por qual razão determina-las?

Voltando ao mote inicial, retomamos a nossa hipótese de que, em Outrora Agora, há um percurso de dicas de leitura que esclarecem a obra e que, não sendo negligenciadas, incitam ainda discussões que vão além da obra, abordando questões por vezes polêmicas na teoria literária, (como a função da literatura ou a sua continuidade na atualidade, e os hábitos dos escritores quanto aos nomes de personagens, narradores e títulos das obras).

Dois fatos possibilitam tais discussões na obra. O primeiro advém do fato de ser Jerônimo um fiel leitor apaixonado por literatura, que, no decorrer da narrativa, alude-se a uma miríade de escritores, ora tecendo reflexões sobre eles, ora sobre a própria literatura, de forma geral. O segundo fato aponta para a metaliteratura, ou seja, o suposto romance que está sendo escrito por Cristina serve de pretexto para discussões sobre os possíveis amantes, a própria leitura da obra, ou a literatura de maneira mais ampla. Selecionamos quatro passagens dentre as mais representativas para exemplificar tal aspecto da obra. Serão apenas pinceladas sucintas frente à complexidade dos temas, mas servirão ao objetivo ilustrativo proposto.

Na primeira passagem, indagando-se quanto ao livro de Cristina, Abelaira dirige-se à sua própria obra: “1 - Mas por que não há de ser escrito em todas as pessoas? De modo a que nunca se perceba quem é o sujeito?” (Abelaira: 1996, 176).

Ora, tal passagem autoriza o leitor a confirmar suas hipóteses acerca das estratégias narrativas da obra, uma vez que, em Outrora Agora, o personagem Jerônimo constitui um duplo de si mesmo, ou seja, não é possível distinguir a voz que narra da voz que vivencia a história, pois seria válido afirmar que o narrador é o próprio Jerônimo, que buscando um distanciamento de si mesmo, se divide em um Eu e um Outro. O Eu vive (ou imagina), o Outro narra, e tal alteridade é explicada por Lacan quando este “desfaz a ilusão de completude, a pretensão de síntese e a miragem da unidade do Eu, mostrando que Eu é, antes de mais nada outro”. (Quinet: 2001).

No segundo fragmento, Abelaira (através de Jerônimo), nos lembra as divergências que existem entre os críticos quando se trata de analisar o valor simbólico dos nomes das personagens:

2 -Xavier, Beatriz, Alice. A Cristina escolheu estes nomes ao acaso ou querem eles significar qualquer coisa, terão um valor simbólico que deverá ser levado por mim (o leitor em suma)? Beatriz, Beatriz, referencia ao Dante?(...) Tolice. Se eu fosse personagem de romance, a que especulações se entregariam os críticos? São Jerônimo que se dedicou a explicar o significado de certos nomes bíblicos? São Jerônimo, o homem que, contra alguns dos seus pares da patrística, defendeu a literatura, argumentando que na Bíblia, muitas vezes, Deus escreveu em verso? (Abelaira: 1996, 197).

 

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