Saber consiste,
pois, em referir a linguagem à linguagem. Em
restituir a grande planície uniforme das palavras
e das coisas. Em fazer tudo falar. Isto é,
em fazer nascer, por sobre todas as marcas, o discurso
segundo do comentário. O que é próprio
do saber, não é nem ver nem demonstrar,
mas interpretar.
Michel
Foucault, 2000.
Na
narrativa Outrora Agora, a metalinguagem, fenômeno
tão comum nos romances pós-modernos, reveste-se
de singular autenticidade para compor o espírito
de um tradutor apaixonado por literatura: ela constitui
na obra, antes de mais nada, um valioso percurso de
dicas de leituras que o Autor nos sugere através
da relação de dissecação
e especulação que o tradutor Jerônimo
tem para com as palavras e a própria literatura.
Jerônimo
fala de palavras e literatura, e isso, de certa forma,
direciona a leitura, já que somos levados a associar,
na obra, os mesmos caracteres a que ele se refere em
seu discurso, conforme fragmento abaixo:
(...)
ao pedir ao marido, a despropósito (...) que
avisasse a filha para trazer os cobertores, quando
viesse no princípio da semana, foi isso
que quis dizer (poderia telefonar-lhe) ou discretamente
avisou-me de que apenas dispunha-se de mais três
ou quatro dias para estar sós e de que o tempo
aperta? (...) Seria necessário dizer "no
princípio da semana" quando o marido certamente
sabe que é no princípio da semana? (Abelaira:
1996, 66). Grifo nosso.
Jerônimo
procura o fim último das palavras, espia por
trás delas, abaixo delas, e tenta extrair o sentido
oculto nos enunciados. No fragmento acima, ele insinua-nos
que é preciso estar atento às diferentes
nuanças de sentido que pode conter um enunciado,
e que por trás das palavras pode haver uma intenção,
mais profunda, e que é preciso desvendá-la.
Ora, em uma obra irônica como Outrora Agora,
vemos-nos tentados a analisar “Jerônicamente”
todas as falas que dêem margem ao dúbio
(contam-se praticamente todas). Todavia, não
arriscaríamos afirmar tal raciocínio categoricamente,
uma vez que, na obra de Abelaira, nada se firma definitivamente.
Este é o romance das possibilidades, do vir a
ser, de forma que não se pode, seguindo exemplo
de Jerônimo, afirmar, acertadamente, um segundo
sentido nos enunciados, porquanto o próprio personagem
nos alerta:
(...)
Como, por de baixo de cada uma das palavras da Cristina,
me interrogo sempre se não há outro
sentido, ela não se interrogará da mesma
forma acerca de mim? É isso, eu quero sempre
dizer outra coisa? (...) Sim, a que palavras
a Cristina terá atribuído outro sentido?
Procurá-las. Proceder ao inventário
das palavras possíveis. Não, só
ela as conhece. Mas estuda-me, experimenta-me.
(Abelaira: 1996, 66). Grifo nosso
Na
passagem acima, a tese anterior (de que tudo tem um
segundo sentido) é desmontada: indiretamente,
alerta-se o leitor quanto ao caráter impreciso,
indefinido e suspenso da obra, onde nada se sustenta,
nada se confirma, incluindo-se aí as suposições
e especulações do próprio leitor,
ora autorizadas, ora desautorizadas pelo personagem.
Maria
de Lourdes Ferraz confirma nossa hipótese quando
afirma que “o jogo irônico, pelo não-dito,
pela relação entre o ser e o parecer,
provoca no leitor a busca de um sentido (im)possível
na obra, estabelecendo-se, desse modo, uma relação
dialógica entre o autor e o leitor”. (Ferraz:
2004).
No
âmbito das palavras, pode-se observar, ainda,
a interessante relação do protagonista
para com estas: ele persegue, escolhe ou reprova as
palavras, procura a melhor forma de se expressar, busca
a adequação e a exatidão vocabular.
Até certo ponto, nada excepcional, se pensarmos
em um tradutor, ou seja, alguém que reescreve
livros, diz o mesmo em outro código lingüístico.
Mas tal característica (de esmiuçar palavras)
fica por demais interessante se observada a relação
de paixão, prazer e ludicidade. Jerônimo
brinca com as palavras, degusta-as, e isso muito lhe
agrada:
Sobre
os regos de água, sobre os modos de defendê-los
da erosão, fiquei um especialista exímio.-
Espanta-se com o emprego da palavra "exímio",
mas repete-lhe, dando agora um tom irônico (que
possivelmente já teria antes). – Exímio.
O desejo de ouvi-la responder: "Exímio?",
de ouvir a palavra na boca dela (...). (Abelaira:
1996, 143).
Neste
fragmento, Jerônimo se espanta com a sua própria
escolha vocabular-exímio. Mas repete tal vocábulo
(como quem gostou do que disse) e deseja
ouvir a Cristina repetir tal palavra, e, ainda mais,
deseja-a na boca de Cristina. Uma relação
lúdica, prazerosa, e até mesmo erotizada
com as palavras, já que elas são objetos
de paixão para Jerônimo, e que paixão
envolve desejo, e, desejo, realização:
A
Cristina, a Filomena, a súbita excitação
do pénis. Que sentiu quando conversava com
a Cristina. (...) O teu estímulo não
veio directamente do corpo da Cristina, passou pelas
palavras. Pelas palavras? Mas nem todas as palavras
de mulher estimulam o teu sexo, somente as palavras
de certas mulheres. (...) Daqui em diante a oliveira
"a palavra oliveira" recordar-te á
a Cristina, passará por vezes a excitar-se.
(Abelaira: 1996, 185).
Não
nos deitamos, não nos tocamos, mas fomos amantes
verdadeiros. O poder táctil das palavras. (Abelaira:
1996, 222).
As
palavras excitam, são estímulos sexuais
sem serem intencionalmente lascívias ou libidinosas,
no primeiro fragmento, enquanto que no segundo, elas
proporcionam o deleite das almas através de um
poder tátil que afaga o intocável, o não-palpável.
Um impossível que se realiza através da
linguagem.
Jerônimo
ainda lança um olhar para além dos limites
da sua relação íntima com as palavras,
questionando-se acerca da relação da sociedade
para com estas e dos sentidos e interditos sociais,
conforme fragmento abaixo:
Problemas
difíceis: há palavras feias e palavras
socialmente consideradas aceitas. Por que razão
"foder" é feio e copular não
é, quando, na verdade, copular, como palavra
em si mesma, é bem mais feia, e bem mais difícil
de pronunciar do que foder?(...) Urinar em vez de
mijar, traque em vez de peido. (...) É isso,
é isso, por que razão certas palavras,
certas palavras e não coisas, foram proibidas?
Coisas que até podem ser ditas, se as palavras
forem outras. (Abelaira: 1996, 114).
Esta
passagem nos conduz aos conceitos saussurianos de significado/significante
e arbitrariedade do signo lingüístico. A
questão foi apenas pincelada e soa como questionamento
ao leitor: a “coisa” (sentido) seria exatamente
o mesmo entre as duplas de palavras acima? A imagem
acústica certamente o é, ainda que as
palavras possam evocar nuanças diferenciadas
de sentido. E como determinar palavras permitidas e
proibidas em uma sociedade? E por qual razão
determina-las?
Voltando
ao mote inicial, retomamos a nossa hipótese de
que, em Outrora Agora, há um percurso
de dicas de leitura que esclarecem a obra e que, não
sendo negligenciadas, incitam ainda discussões
que vão além da obra, abordando questões
por vezes polêmicas na teoria literária,
(como a função da literatura ou a sua
continuidade na atualidade, e os hábitos dos
escritores quanto aos nomes de personagens, narradores
e títulos das obras).
Dois
fatos possibilitam tais discussões na obra. O
primeiro advém do fato de ser Jerônimo
um fiel leitor apaixonado por literatura, que, no decorrer
da narrativa, alude-se a uma miríade de escritores,
ora tecendo reflexões sobre eles, ora sobre a
própria literatura, de forma geral. O segundo
fato aponta para a metaliteratura, ou seja, o suposto
romance que está sendo escrito por Cristina serve
de pretexto para discussões sobre os possíveis
amantes, a própria leitura da obra, ou a literatura
de maneira mais ampla. Selecionamos quatro passagens
dentre as mais representativas para exemplificar tal
aspecto da obra. Serão apenas pinceladas sucintas
frente à complexidade dos temas, mas servirão
ao objetivo ilustrativo proposto.
Na
primeira passagem, indagando-se quanto ao livro de Cristina,
Abelaira dirige-se à sua própria obra:
“1 - Mas por que não há de ser escrito
em todas as pessoas? De modo a que nunca se perceba
quem é o sujeito?” (Abelaira: 1996, 176).
Ora,
tal passagem autoriza o leitor a confirmar suas hipóteses
acerca das estratégias narrativas da obra, uma
vez que, em Outrora Agora, o personagem Jerônimo
constitui um duplo de si mesmo, ou seja, não
é possível distinguir a voz que narra
da voz que vivencia a história, pois seria válido
afirmar que o narrador é o próprio Jerônimo,
que buscando um distanciamento de si mesmo, se divide
em um Eu e um Outro. O Eu vive (ou imagina), o Outro
narra, e tal alteridade é explicada por Lacan
quando este “desfaz a ilusão de completude,
a pretensão de síntese e a miragem da
unidade do Eu, mostrando que Eu é, antes de mais
nada outro”. (Quinet: 2001).
No
segundo fragmento, Abelaira (através de Jerônimo),
nos lembra as divergências que existem entre os
críticos quando se trata de analisar o valor
simbólico dos nomes das personagens:
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-Xavier, Beatriz, Alice. A Cristina escolheu estes
nomes ao acaso ou querem eles significar qualquer
coisa, terão um valor simbólico que
deverá ser levado por mim (o leitor em suma)?
Beatriz, Beatriz, referencia ao Dante?(...) Tolice.
Se eu fosse personagem de romance, a que especulações
se entregariam os críticos? São Jerônimo
que se dedicou a explicar o significado de certos
nomes bíblicos? São Jerônimo,
o homem que, contra alguns dos seus pares da patrística,
defendeu a literatura, argumentando que na Bíblia,
muitas vezes, Deus escreveu em verso? (Abelaira: 1996,
197).
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