Assim,
no plano literário, é possível,
por exemplo, compreender o advento do Romantismo entre
nós, durante o século XIX, como uma
autêntica ruptura de conceitos e padrões
estéticos até então vigentes,
a despeito de algumas "dívidas" estéticas
que ainda mantínhamos com Portugal e que, logo
em seguida, passamos a ter com a França. Mas
no âmbito da expressão formal, por exemplo,
os cânones lingüísticos que vigoravam
acabaram sendo solapados pela fúria renovadora
de um Alencar, consolidando uma nova expressão
literária no país. (4)
Assim, com Alencar e sua geração, começa
a se consolidar no Brasil as bases para a formação
de uma expressão literária autenticamente
nacional. (5)
Evidentemente,
não se pode medir, com precisão, o grau
de eficiência alcançado pelos românticos
no seu intuito de fundar uma tradição
literária definitivamente nacional. Sabe-se,
inclusive, que os objetivos concretos de instituição
de uma identidade a partir de uma ruptura cultural,
idealizados pelos românticos, só se efetivariam
no século seguinte, com os modernistas (6).
Isto se deve, entre outras coisas, à fragilidade
da reação que os românticos desencadearam
contra os cânones lingüísticos lusitanos,
por um lado; e, por outro lado, ao fundamento extremamente
idealista sobre o qual assentou a imagem do homem
e do meio defendida por aqueles. Basta atentar para
a mitificação do universo indianista
de concepção claramente rousseauniana,
que acabou por se tornar a pedra de toque dos poemas
nativistas de um Gonçalves Dias ou dos romances
indianistas de um Alencar, durante o mesmo século.
De
qualquer maneira, a gênese dessa transformação
ainda se situa entre os nossos mais célebres
românticos, o que faz também do Romantismo,
senão uma estética visceralmente comprometida
com a ruptura, ao menos um eficiente pólo irradiador
de tendências estéticas renovadoras.
Neste sentido, não nos parece demasiadamente
arriscado considerar o nosso Romantismo literário
uma escola comprometida com os anseios de renovação
que, na época, contaminavam a atmosfera político-social
do país, devendo emergir na história
da cultura nacional como uma estética efetivamente
ligada a certa tradição da ruptura
que, afinal de contas, comporta a maior parte das
literaturas latino-americanas de então.
Desse
modo, a busca da origem de nossa literatura pode ser
percebida, primeiramente, entre os românticos,
que ansiavam por um referencial para o próprio
ideário artístico nacional, em que não
faltavam traços de singularidade literária:
descrição da natureza tropical, heróis
honrados, reafirmação da identidade
nacional. (7)
É
verdade que tal ruptura ter-se-ia forjado um século
antes, seja por meio da política, com as incontáveis
rebeliões nativistas e anti-colonialistas a
que assistimos no Brasil, seja por meio de uma literatura
comprometida com um ideário iluminista, manifestando
as primeiras tentativas de se criar, em solo pátrio,
uma consciência autenticamente nacional
(8). Apesar disso, é somente a partir
do século XIX com a independência
política, mas também com o alargamento
da consciência de uma maior autonomia cultural
que a literatura deixa de ser reflexo difuso da realidade
nacional, para compor um patrimônio capaz de
dar ao país como sugerimos a princípio
um lastro identitário.
A
crítica literária e a identidade nacional
Foi
Machado de Assis, nosso maior literato, quem inaugurou
em fins do século XIX uma discussão
mais lúcida acerca de nossa identidade cultural,
por meio da literatura, quando reconhecia na produção
estética de sua época a despeito
do exagero da cor local e do nativismo um "instinto
de nacionalidade" que podia ser interpretado
como "sintoma de vitalidade e abono de futuro",
dando por fim "fisionomia própria ao pensamento
nacional". (9)
A
discussão fez escola, e, já nas primeiras
décadas do século XX, o problema da
identidade cultural brasileira era discutido em termos
de emancipação literária
por José Veríssimo que, em sua célebre
História da Literatura Brasileira (1916),
inaugurava uma reflexão sustentada pela conjunção
entre unidade e autonomia:
"a
literatura que se escreve no Brasil já é
a expressão de um pensamento e sentimento
que se não confundem mais com o português,
e em forma que, apesar da comunidade da língua,
não é mais inteiramente portuguesa.
É isto absolutamente certo desde o romantismo,
que foi a nossa emancipação literária,
seguindo-se naturalmente à nossa independência
política. Mas o sentimento que o promoveu
e principalmente o distinguiu, o espírito
nativista primeiro e o nacionalista depois, esse
se veio formando desde as nossas primeiras manifestações
literárias, sem que a vassalagem ao pensamento
e ao espírito português lograsse jamais
abafá-lo. É exatamente essa persistência
no tempo e no espaço de tal sentimento, manifestado
literariamente, que dá à nossa literatura
a unidade e lhe justifica a autonomia". (10)
Essa capacidade de síntese e clareza de idéias,
aliada à absoluta relevância dada por
José Veríssimo a critérios que
equacionavam o social e o estético na consideração
da cultura literária nacional, fez de sua crítica
uma das mais lúcidas do século passado.
(11)
No
excerto transcrito, percebe-se claramente a preocupação
do autor em mobilizar não apenas conceitos
de extração política (a independência,
o nacionalismo), mas também de natureza estética
(nativismo, língua), a fim de conformar uma
espécie de teoria da emancipação
literária brasileira, a marcar originalmente
nossa identidade nacional.
Apesar
da reconhecida autonomia de uma expressão literária
autenticamente brasileira, Veríssimo já
assinalava a exemplo de Machado de Assis, quase
meio século antes uma incômoda
"tendência localista", a permear a
produção estética nacional, fato
que teria gerado uma não menos incômoda
ausência de "comunicabilidade" entre
nossos escritores, criando-se assim uma literatura
de castas, excludente e provinciana. (13)
Num
diapasão mais moderado, o eminente crítico
paraense reconhecia, contudo, ser a literatura regional
quando liberta de "preconceitos bairristas",
desfeita de "arrebiques e posturas literárias"
e buscando ser "superiormente espontânea
e sincera" expressão correta de
nossa independênca estética e cultural
(14).
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