É,
portanto, na dicotomia entre dependência e emancipação
literárias que se coloca de modo inaugural
para nossa literatura a crítica mais
consistente de José Veríssimo, a dar
o tom das primeiras discussões acerca das infindáveis
relações entre a cultura brasileira
e a identidade nacional.
A discussão renderia frutos diversos até
chegar aos dias atuais. Mas, como já salientou
Roberto Ventura, o projeto histórico de construção
da sociedade nacional recebe impulso considerável
exatamente nessa passagem do século XIX para
o XX, instituindo um debate que envolveu outros intelectuais
do período, como Araripe Júnior e Sílvio
Romero, todos preocupados com a definição
e caracterização dos elementos formadores
da identidade nacional. (15)
Presentemente,
a discussão acerca de nossa nacionalidade literária
que já teve entre suas lides figuras
exponenciais, como um Sérgio Buarque de Holanda
ou um Gilberto Freire surge representada e intermediada
por vários críticos, como por exemplo
Antônio Cândido, que expandindo
os limites estreitos pelo qual se norteavam os debates
acerca do fato literário propôs
a consideração da literatura como um
complexo sistema de relações sociais
e culturais que não dispensa nem o trinômio
autor-obra-público, nem a idéia da nacessidade
de se fazer literatura a partir de uma organicidade
social e de uma sistematização estética.
Evidentemente,
as diretrizes propostas por Antônio Cândido
não se fizeram sem uma consciência cada
vez mais nítida da identidade cultural brasileira,
a qual só se realizaria plenamente a partir
da dialética que operava a polaridade dependência/emancipação,
a fim de se chegar à síntese da autonomia
estética, processo que demoraria com
um rigor matemático, já que vai de 1822,
data de nossa independência política,
a 1922, data da Semana de Arte Moderna pelo
menos um século.
A
preocupação de Antônio Cândido
não é exatamente o problema da autonomia
literária, mas da literatura como fenômeno
de civilização, sempre apreendido sob
o ponto de vista histórico. Contudo, se neste
aspecto suas opiniões coincidem com as de José
Veríssimo (que chamava de civilização
o que, Antônio Cândido, num sentido gregário,
chama de sociedade), há divergência
na consideração dos elementos fundadores
de nossa identidade literária, a qual teria
sido inaugurada pelos autores barrocos do século
XVII, segundo Veríssimo, e pelos autores árcades,
do século XVIII, segundo Cândido:
"os
escritores neoclássicos são quase
todos animados do desejo de construir uma literatura
como prova de que os brasileiros eram tão
capazes quanto os europes; mesmo quando procuram
exprimir uma realidade puramente individual, segundo
os moldes universalistas do momento, estão
visando este aspecto (...) Depois da Independência
[esse] pendor se acentuou, levando a considerar
a atividade literária como parte do esforço
de construção do país livre,
em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido,
que visava a diferenciação e particularização
dos temas e modos de exprimi-los".
(16)
Construir uma literatura autenticamente brasileira,
como parte de um programa de construção
da própria identidade nacional, teria
sido, portanto, um dos propósitos de nossos
primeiros literatos. Semelhante propósito fortaleceria
profundamente certa consciência nacional, fazendo
da literatura um dos primeiros e mais eficazes suportes
culturais da nossa identidade:
"as
letras e idéias no Brasil colonial se ordenam
(...) com certa coerência, quando encaradas
segundo as grandes diretrizes que as regeram. Em
ambas coexistiram a pura pesquisa intelectual e
artística, e uma preocupação
crescente pela concepção ilustrada
da inteligência a partir da segunda metade
do século XVIII permitiu a precipitação
rápida da consciência nacional durante
a fase joanina, fornecendo bases para o desenvolvimento
mental da nação independente".
(17)
Evidentemente, essa consciência nacional não
se forjaria sem percalços diversos, o mais
importantes deles a modular, conforme explica o mesmo
Antônio Cândido, os empenhos de nossos
literatos e intelectuais para criar em solo pátrio
uma expressão literária singular: a
dicotomia entre a afirmação obstinada
de um nacionalismo literário (localismo) e
a imitação deliberada de modelos estéticos
europeus (cosmopolitismo). (18)
De
qualquer maneira, essa dicotomia ainda que reveladora
do quão distante se encontravam os nossos escritores
pré-Semana de Arte Moderna dos métodos
mais arejados para a afirmação de uma
literatura nacional independente mostra como,
nos países latino-americanos, ainda no dizer
de Antônio Cândido,
"a
literatura sempre foi algo profundamente empenhado
na construção e na aquisição
de uma consciência nacional (...) Entre nós
tudo se banhou de literatura, desde o formalismo
jurídico até o senso humanitário
e a expressão familiar dos sentimentos".
(19)
Semelhante opinião corrobora, como vínhamos
sugerindo desde o princípio, a idéia
de que a literatura brasileira pode ser entendida
como um conjunto de traços culturais que, atuando
de modo funcional e interligado, formam um complexo
capaz de dar inegável consistência à
nacionalidade brasileira. (20)
Além
disso, pode-se facilmente depreender da exposição
aqui realizada que a literatura brasileira concorre
talvez como poucas manifestações
estéticas de nosso cabedal artístico
para a consolidação de nossa considência
nacional, atuando, ao mesmo tempo, como espelho de
uma identidade em construção e fundamento
simbólico dessa mesma identidade.
© Mauricio Pedro Da Silva*,
2004 
|