A interpretação do Quixote de Cervantes, mantidos o mesmo lugar e a mesma identidade da enunciação, já teria, por si só, expandido os significados, pelo devir dos universos históricos e das narrações publicadas: o Quixote "fue ante todo um libro agradable; ahora es una ocasión de brindis patriótico"

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ññ

De Borges a Tomás Eloy Martínez: um Pierre Ménard para a história argentina (*)

por Cristine Fickelscherer de Mattos
 
 

O trabalho que ora se apresenta pretende relacionar uma interpretação do conto borgeano "Pierre Menard, ator do Quixote", baseada em conceitos as Semiótica, com os romances La novela de Perón e Santa Evita do escritor argentino Tomás Eloy Martínez. Os conceitos usados na interpretação do texto de Borges provêm das postulações teóricas de Peirce e das leituras e desenvolvimentos que delas fazem Umberto Eco e Lúcia Santaella.

O conto de Borges, escrito em 1939, refere a história, já canônica, do escritor e crítico literário francês chamado Pierre Ménard, que viveu no começo do século XX e que se lançou ao desafio de compor uma obra, "tal vez la más significativa de nuestro tiempo" —nos diz o narrador—, que consiste dos capítulos nono e trigésimo oitavo, além de um fragmento do capítulo vinte e dois, da primeira parte do Quixote de Cervantes, publicada em 1605. Embora os fragmentos da obra ménardiana sejam textualmente idênticos aos da obra cervantina, o significado que deles brota, nos aponta o narrador, é espantosamente contrastante. Se em Cervantes afirmar, por exemplo, que "a história é mãe da verdade", constitui "un mero elogio retórico de la historia", em Ménard se converte em "idea asombrosa", pois um contemporâneo de William James deveria definir a história não como origem da realidade, mas como uma indagação sua.

A distância temporal faz refletir sobre o texto, outrora cervantino, agora ménardiano, uma inevitável luz irônica. O trabalho inefável de Ménard escolhe como realidade a ser referida a Espanha do século XVI, mas não se dedica em sua obra a descrever a cor local como meio de produzir verossimilhança. Não busca o antigo com os olhos de antiquário do presente. Tampouco o busca com os olhos do passado, pois Ménard descarta a idéia inicial de tentar ser Cervantes para poder escrever o Quixote. A empresa de Ménard "indica un sentido nuevo de la novela histórica", porque postula um diálogo impossível, e por isso mesmo ficcional, entre passado e presente. (1)

O conto de Borges nos faz vislumbrar alguns conceitos atados à percepção e expansão dos significados. Peirce postulou o signo, ou representâmen, de forma ampla, como "aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém". Para representar algo, porém, esse signo "cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, denominado "interpretante" (PEIRCE: 1995, 46). Para se chegar a uma interpretação do que é lido, como de todo e qualquer outro fenômeno que possa nos aparecer à mente, é necessário selecionar seus aspectos significadores, já que a sua mera relação com os objetos que indica um signo (pois pode indicar vários deles) não é suficiente para definir se se trata de

"uma coisa singular existente e conhecida ou que se acredita tenha anteriormente existido ou que se espera venha a existir, ou um conjunto de tais coisas, ou uma qualidade, relação ou fato conhecidos cujo Objeto singular pode ser um conjunto ou uma totalidade de partes". (PEIRCE: 1995, 48)

A vasta possibilidade significadora de um só signo subordina-se assim à ordem da percepção desse "alguém" em cuja mente surgem interpretantes, isto é, idéias às que o signo dá origem na mente do intérprete. Umberto Eco, reformulando a leitura mais corrente dos escritos de Peirce, estende as conclusões acima citadas do âmbito definicional dos termos para o universo dos signos proposicionais e dos signos textuais. Amplia, com base nas afirmações pouco sistemáticas de Peirce, a importância estratégica do conceito de interpretante —para o processo de percepção dos significados, ou, na nomenclatura peirceana, para o processo de elaboração do juízo interpretativo— de uma aplicação lexical para um uso literário (ECO: 1986).

O juízo interpretativo depende assim de uma série de interpretantes selecionados e interrelacionados de acordo com a experiência temporal a que se expõe o sujeito interpretante, pois "pensamos ou no que é fisicamente possível ou historicamente existente, ou no mundo de uma narração, ou em algum universo limitado" (PEIRCE, Apud. ECO: 1986, 24). Contudo, o que pensamos se modifica, se expande com o tempo, pois o significado do signo "cresce inevitavelmente, incorpora novos elementos e livra-se de elementos velhos". (PEIRCE: 1995, 40)

A teoria do crescimento contínuo do universo na mente humana (SANTAELLA: 2002, 25) parece ter sido feita sob medida para a interpretação do conto de Borges. Como nos informa o próprio narrador, os textos de Cervantes e Ménard são verbalmente idênticos, "pero el segundo es infinitamente más rico", porque o tempo lhe acrescentou muitos interpretantes no transcorrer de trezentos anos, carregados de complexos fatos e, entre eles, "para mencionar uno solo: el mismo Quijote".

A interpretação do Quixote de Cervantes, mantidos o mesmo lugar e a mesma identidade da enunciação, já teria, por si só, expandido os significados, pelo devir dos universos históricos e das narrações publicadas: o Quixote "fue ante todo um libro agradable; ahora es una ocasión de brindis patriótico". O fato, contudo, de que sejam outras as condições de enunciação do texto ménardiano, altera ainda mais o processo interpretativo, visto que a seleção de interpretantes, feita pelo intérprete, baseando-se no conjunto do "que se acredita tenha anteriormente existido ou que se espera venha a existir", relacionará os signos textuais ou o signo-texto a interpretantes pertinentes ao espírito significador do século XX e não ao do XVI. Na terminologia peirceana, poderíamos dizer que o ground —que se define como o atributo do objeto enquanto objeto selecionado em certo modo, em que somente alguns dos seus atributos foram tornados pertinentes— é diferentes nos dois casos (PEIRCE Apud ECO:1986, 16). "Para funcionar como signo, algo tem de estar materializado numa existência singular, que tem um lugar no mundo (real ou fictício) e reage em relação a outros existentes do seu universo." Se este lugar no mundo se define, para o texto de Ménard, como a França intelectual do século XX (pois se detalha o trabalho de crítica literária do personagem) e se nossa percepção depende do ponto de vista que assumimos no ato de recepção dos signos e do aspecto que nele prepondera (SANTAELLA: 1992, 77), então essa assunção temporal e espacial acarretará, como nos diz o narrador do conto, conseqüências interpretativas em relação às asserções gerais do texto e ao seu valor estético: o estilo de Ménard é arcaizante, irônico, sutil, o de Cervantes, "desenfadado" e "burdo".

___________

(*) Texto presentado como ponencia en el II Congresso Internacional Todas as Letras (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil) en octubre de 2003.

(1) Todas as citações acima, e as vindouras, se referem ao conto de Jorge Luis Borges, incluído em BORGES, Jorge Luis - Ficciones. 13a ed. Madrid: Alianza Editorial, 1986. "Pierre Ménard, autor del Quijote", 47-59.

 

Página 1 de 2

[ 1 - 2 - Bibliografía ]

 

contacto | quiénes somos | colaboraciones | legal | libro de visitas | enlaces | © el hablador, 2003-2004
:: Hosting provisto por Hosting Peru ::
Hosting