Os textos de Cervantes e Ménard são verbalmente idênticos, pero el segundo es infinitamente más rico, porque o tempo lhe acrescentou muitos interpretantes no transcorrer de trezentos anos, carregados de complexos fatos e, entre eles, para mencionar uno solo: el mismo Quijote

 

 

 

 

O trabalho que realiza Tomás Eloy Martínez em La novela de Perón (1985) e Santa Evita (1995), contextualizando diversos signos —simples termos e signos-textuais— do universo histórico-cultural argentino, pode ser comparado à empreitada audaciosa de Ménard. Martínez não cita textos alheios para tecer sobre eles comentários críticos —procedimento que manteria o ground em que foram produzidos—; não se propõe a reescrever tais textos, mas a escrevê-los, inscritos em novo universo ficcional. As "Memorias" de Perón, no primeiro romance —texto anterior, publicado pela revista Panorama e elaborado a partir de entrevistas feitas pelo próprio Martinez—, são escritas pela personagem Zamora (e por seu duplo, chamado estrategicamente Tomás Eloy Martínez). Analogamente, no segundo romance, o narrador-personagem Tomás Eloy Martínez escreve textos peronistas como La razón de mi vida e Mi mensaje, ambos ambiguamente atribuídos a Evita, para compor fragmentos e títulos da obra.

Estes textos anteriores, quando escritos no fim do século XX (quinze anos depois das "Memórias" da revista Panorama e décadas depois dos textos de Evita), por outro enunciador, cujo lugar no mundo é bem conhecido dos seus leitores em potencial —já que Martínez é jornalista renomado na Argentina à época—, têm seu ground alterado. Para além da transposição autoral, o devir histórico acumulou novos interpretantes, nascidos dos muitos textos posteriores à escritura daqueles primeiros, tanto no âmbito biográfico, quanto jornalístico ou sociológico que procuravam argumentar em favor de juízos interpretativos sobre os signos incluídos naquelas primeiras obras, como meios de entender o fenômeno peronista. A expansão dos significados se deve também ao próprio desenrolar da história: em relação a La novela de Perón, se deve ao fato de que depois das "Memorias", Perón retorne ao poder e deixe, ao falecer, o governo nas mãos bizarras de Isabelita e López Rega, sendo sucedido pela ditadura militar; em relação a Santa Evita, a que depois dos anos cinqüenta, de produção dos textos de Evita, virá a decadência do governo peronista, surgirá a esquerda peronista e sucederão todos os fatos posteriores às "Memorias", incluindo a publicação de La novela de Perón, romance com o qual Santa Evita mantém um constante diálogo intertextual.

Martínez lança nova luz interpretativa sobre os signos peronistas, sejam eles sintagmas como "esquerda peronista" e "corpo embalsamado", ou signos textuais como as próprias "Memorias" ou os dois livros de Evita. Numa perspectiva semiótica, a escritura martineziana não interpreta os fatos históricos relacionados ao peronismo, mas apenas os signos conectados a estes supostos fatos. Para Peirce "a realidade não é simples Dado, mas antes um Resultado." (ECO: 1986, 27)

A realidade depende da percepção e esta por sua vez se condiciona a diversos fatores contingenciais. Disso deduz-se a extrema fragilidade de um possível enfoque objetivo da realidade. Também para as teorias da chamada Nova História o evento em estado puro, denominado "passeidade", não é acessível senão através de textos, de registros ou documentos que já carregam em si uma certa perspectiva de percepção (LEENHARDT & PASAVENTO, 1988), um ground selecionador de interpretantes. Assim como no conto de Borges, nos romances de Martínez também há um personagem caracterizado como autor de textos transpostos temporal e espacialmente que, conseqüentemente, tiveram seu ground modificado. Em ambos os romances, esse personagem autor se chama Tomás Eloy Martínez. Em La novela de Perón, ao referir o trabalho que originou as "Memorias", a personagem Tomás Eloy Martínez dialoga com seu duplo narrativo Zamora para dizer:

"He contado muchas veces esta historia pero nunca en primera persona, Zamora. No sé qué oscuro instinto defensivo me ha hecho tomar distancia de mí, hablar de mí como si fuera otro. Ya es tiempo de mostrarme tal como soy, de sacar mis flaquezas a la intemperie." (MARTINEZ: 1985, 305)

As "Memorias", antes transcritas como alheias por uma suposição de objetividade narrativa, agora demonstram uma consciência peirceana do ground e da sua força seletiva de interpretantes e, por isso mesmo, se assumem como próprias, pois, assim como o narrador do conto borgeano, o narrador-personagem aqui sabe que mesmo repetindo as palavras de outrem —neste caso as de Perón—, o lugar da enunciação acarretará outro processo de semiose intepretativa.

Da mesma forma, em Santa Evita, o narrador-autor-personagem Tomás Eloy Martínez se angustia por não conseguir enfocar os fatos de forma objetiva. Sua depressão, ao escrever o livro que lemos, se dá pela desorientação produzida pelo contínuo encontrar de signos cujos interpretantes apontam às mais contrastantes direções. Os textos de Evita e sobre Evita são escritos por Martínez e pelos mais diversos sujeitos enunciadores. Todos, ao escrever, reenunciam o signo Evita que veiculam esses textos e a ele atribuem um conjunto diverso de interpretantes. A certa altura, o narrador reflete sobre "los abismos que hay entre un signo y su objeto" para, mais adiante, concluir: "Los seres están suspendidos en su pasado pero jamás son los mismos: el pasado se va moviendo con ellos y, cuando uno menos lo espera, los hechos se han desplazado de lugar y significan otra cosa." (MARTÍNEZ: 1995, 80 e 190).
Para concluir, gostaria de refletir sobre o valor de uma nova "edição" da escritura de textos pré-existentes. Ela possibilita uma nova percepção, isto é, uma nova leitura dos signos que conformam a nossa realidade. Velhas leituras, às vezes, se deixam enrijecer, pois

"Um signo que produz uma série de respostas imediatas (...) estabelece paulatinamente um habito (habit), uma regularidade de comportamento no próprio intérprete. Hábito é uma tendência ... a agir de maneira semelhante em circunstâncias semelhantes no futuro, e o Interpretante Final de um signo é esse habito como resultado." (ECO: 1986, 27)

Para romper com hábitos freqüentemente tornados inadequados pelas demandas das novas circunstâncias históricas, intertextuais ou pessoais, novas leituras são necessárias, para que se possam vislumbrar novas dimensões. E, para tal, são indispensáveis Pierres Ménards que, como Martínez, nos façam notar, em razão do aparente absurdo de sua empresa, o caráter inefável da realidade, cujo atributo ontológico é um universo hipoteticamente vazio, à espera da atribuição de interpretantes para cada uma dos elementos que o compõem.

Se a publicação de La novela de Perón e Santa Evita desatou certas polêmicas, será porque certos leitores, que também escrevem novamente para si os textos que se lhes apresentam, julgam que na história argentina os textos anteriores, assim como o de Cervantes, têm mais valor de realidade que os posteriores. Mas como nos explica o narrador borgeano, a técnica anacrônica ménardiana nos permite ver no Quixote "final" uma espécie de palimpsesto que inclui tanto o texto cervantino quanto o ménardiano. Isso equivale a dizer que o Quixote, e os signos textuais de Evita e Perón, já não poderão ser os mesmos depois do trabalho das personagens Ménard e Tomás Eloy Martínez (e Zamora). E, por extensão, a história da literatura hispânica, por um lado, e a história argentina, por outro, já não serão as mesmas após as escrituras de Borges e Tomás Eloy Martínez.

© Cristine Fickelscherer de Mattos*, 2004 descargar pdf

 

(*) Cristine Fickelscherer de Mattos (Sao Paulo)

É mestre e doutoranda em Letras pela Universidade de São Paulo e Professora pela Universidade Anhembi-Morumbi, onde é membro do Conselho Docente do Curso de Letras e Coordenadora dos Estágios de Licenciatura em Espanhol.

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